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Refletir sobre a condição de vida das mulheres, criando estratégias coletivas de cuidado, exige uma postura atenta – afinal, cada um de nós traz uma bagagem de experiências que influenciam nossa comunicação, nossas ações e o nosso olhar para o mundo, para nós mesmos e para os outros.  Escapar de uma leitura superficial da realidade, que não considere as diferenças e desigualdades entre os sujeitos, só será possível se reconhecermos as articulações e os atravessamentos entre as relações sociais, como as de gênero, raça e classe.

A abordagem interseccional entende que as identidades coletivas e individuais devem ser analisadas a partir desses atravessamentos, considerando as diferenças não de forma hierárquica e compartimentalizada, mas como um todo indissociável. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade nos permite observar alguns aspectos centrais da dinâmica social, como o domínio cultural, a distribuição do poder, o contexto e a relação entre os marcadores da diferença.

A compreensão sobre a condição das mulheres no Brasil, portanto, só será efetiva se considerarmos também as desigualdades de raça, de orientação sexual, a condição socioeconômica, as características territoriais e outros aspectos que envolvam a experiência cotidiana de todas as pessoas. Por exemplo: de acordo com um levantamento divulgado recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil contabilizou, em 2020, 1.350 casos de feminicídio –  mas quando olhamos mais atentamente, percebemos que a maioria das vítimas (61,8%) era composta por mulheres negras.

Na mesma esteira da interseccionalidade, podemos refletir sobre a representação política: embora sejam a maioria dos eleitores no Brasil, as mulheres ocupam, hoje, apenas 15% dos espaços formais de poder. Mais uma vez, quando nos aprofundamos no indicador, percebemos que a representatividade das mulheres negras é ainda menor: 2,5% e 1,2% das vagas da Câmara e do Senado, respectivamente.

Analisando ainda um último dado, como mostra a publicação“Estatística de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”, publicada em 2021 pelo IBGE, mulheres ainda são mais responsáveis pelo trabalho doméstico do que os homens em todas as classes. No entanto, um segundo recorte evidencia que as mais ricas gastam seis horas a menos por semana cuidando de outras pessoas ou realizando afazeres domésticos do que as mais pobres.

Assim, qualquer política pública ou programa social que atue na promoção da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres, seja no âmbito do empreendedorismo e do mundo do trabalho, da educação ou no combate à violência, deve reconhecer também os demais recortes sociais. Não haverá melhoria da qualidade de vida das mulheres – sejamos nós brancas, pretas, pardas, indígenas, jovens, adultas, idosas, cis, trans, pobres ou ricas – num país atravessado por estruturas racistas, classistas, homofóbicas e transfóbicas.

Como pontua Audre Lorde (2019), a redução das desigualdades passa necessariamente pelo reconhecimento das diferenças; invisibilizá-las, fingir que não existem, impede a criação de modelos e mecanismos que nos ajudem a conviver com equidade.

Estratégias coletivas de cuidado que combatam a desigualdade de gênero também passam por participar da vida pública e das tomadas de decisão dos territórios, conhecer e colaborar em movimentos e coletivos, escutar atentamente os diferentes, observar a própria linguagem e reduzir as distâncias entre os direitos sociais. Estas são algumas possibilidades de ação de todas e todos que estejam verdadeiramente comprometidos com a construção de um país justo, igualitário e não-violento.

Conteúdo:

Bárbara Dias – educadora, pesquisadora de gênero e defensora dos direitos de todas as mulheres.

Fontes:

BILGE, Sirma e COLLINS, Patrícia Hill. Interseccionalidade. Tradução Rane Souza. São Paulo: Boitempo, 2021

HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 1 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018

LORDE, Audre. Idade, raça, classe e gênero: mulheres redefinindo a diferença. In: Pensamento Feminista – Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.

 _______. Não existe hierarquia da opressão. In: Pensamento Feminista – Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.