As comunidades quilombolas, que surgiram como resistência à escravidão no Brasil, têm muito a nos ensinar quando o assunto é sustentabilidade. Beatriz Nascimento, historiadora e ativista afro-brasileira, ampliou o conceito de quilombo para além de um refúgio físico, enxergando-o como um espaço de resistência cultural, política e identitária. Mais do que resistir à opressão, os quilombos são espaços de pertencimento e autonomia, um legado que inspira lutas sociais e raciais.
Em tempos de crise ambiental é fundamental olharmos para essas comunidades e nos permitirmos aprender com suas lições de preservação e coexistência harmônica com a natureza. Abaixo, conheça 9 lições valiosas que precisamos adotar para um futuro mais sustentável.
Gestão sustentável da terra
Nas comunidades quilombolas a gestão da terra é marcada por práticas de uso responsável e harmônico do solo, que respeitam os ciclos naturais e evitam a exploração excessiva. As técnicas agrícolas, como a rotação de culturas e a adubação orgânica preservam a biodiversidade e mantêm a fertilidade do solo.
Aqui, sustentabilidade não é uma escolha, mas uma necessidade, pois a terra é vista como fonte de vida e como tal precisa ser cuidada com respeito e reverência.
De acordo com o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), cada hectare de terra cultivada no Brasil perde, em média, 25 toneladas de solo por ano. Essa perda representa cerca de 1 bilhão de toneladas de solo anualmente. Um dado alarmante que evidencia a urgência de adotar práticas de preservação como as das comunidades quilombolas.
Uso inteligente da água: conservação e consumo eficiente
Em muitas comunidades quilombolas a gestão da água é um exemplo de sabedoria ancestral, onde o consumo é feito de forma consciente e com a máxima eficiência. São empregadas técnicas de captação de água da chuva, aproveitamento de fontes naturais, a não poluição de fontes de água e o consumo consciente.
Essas são algumas práticas utilizadas para garantir que a água, recurso cada vez mais valioso, caro e escasso seja preservada e utilizada com sabedoria, sem desperdício e/ou poluição e respeitando os limites naturais.
Em um planeta onde apenas 3% da água é doce e acessível, o uso sustentável adotado pelas comunidades quilombolas serve de exemplo. Ao captar, conservar e respeitar as fontes naturais, eles nos mostram a importância de valorizar cada gota desse recurso essencial para todos nós.
Alimentação: diversificação de cultivos e autossuficiência alimentar
A alimentação nas comunidades quilombolas é um reflexo direto de sua relação com a terra e o meio ambiente. A diversificação de cultivos é uma estratégia crucial que garante a segurança alimentar e promove a saúde, ao mesmo tempo em que respeita os ciclos naturais.
A produção de alimentos segue práticas agroecológicas que fortalecem a autonomia e a soberania das comunidades sobre seu próprio sustento. Esse modelo de autossuficiência alimentar demonstra, na prática, como a integração com a natureza contribui para a força e a resiliência dessas comunidades, assegurando que vivam de forma independente, sustentável e em sintonia com o meio ambiente.
Valorização dos saberes ancestrais
Os saberes quilombolas constituem legados de sabedoria ancestral que combina conhecimento prático e espiritual sobre a natureza e seus ciclos. A preservação desses conhecimentos é essencial não apenas para a sobrevivência das comunidades, mas também como uma fonte valiosa de práticas sustentáveis.
De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e outras fontes relacionadas, estima-se que há cerca de 3.500 comunidades quilombolas certificadas e reconhecidas oficialmente no Brasil. No entanto, existem muitas outras comunidades que ainda aguardam processos de reconhecimento, o que poderia elevar esse número para próximo dos 5 mil considerando também as comunidades que não possuem ainda reconhecimento formal.
Respeitar essas tradições e reconhecer sua importância são fundamentais para garantir que as futuras gerações continuem a proteger o meio ambiente e a promover a sustentabilidade, mantendo viva a relação entre o ser humano e a terra.
Dados do Mapbiomas indicam que de 1985 a 2023, o Brasil já perdeu 33% de suas áreas naturais. Essa é uma perda significativa que evidencia a necessidade de aprendermos com os quilombolas e começarmos a aplicar o respeito e valorização da terra.
Relação de interdependência com a natureza: vivendo em harmonia
Para as comunidades quilombolas a natureza não é algo separado ou a ser explorado, mas uma força com a qual estamos interconectados. Esse entendimento sobre a interdependência entre os seres humanos e o meio ambiente é a base para a preservação dos ecossistemas.
Nas comunidades quilombolas, a ideia de “cuidar da terra” vai além de um ato de preservação: é uma prática cotidiana que visa manter o equilíbrio e promover uma convivência respeitosa e recíproca entre todos os elementos naturais.
O quilombo é um espaço de acolhimento onde se pratica uma política de relações baseada na construção coletiva. Esse ambiente reflete uma luta incessante pelos direitos sociais, pela legalização da posse de terras e pela preservação das manifestações culturais. Mais do que um local, o quilombo representa o respeito e a busca pela garantia de uma vida digna em uma sociedade que, historicamente, marginaliza os povos afrodescendentes e que, consequentemente, enfrentam barreiras como racismo e preconceito.
Recuperação de áreas degradadas
Apesar de 98% dos territórios quilombolas no Brasil estarem ameaçados, segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), os resultados de quilombolas com a terra continuam a gerar frutos. Como afirma Nego Bispo: , “Plante o que precisar e a terra lhe dará o que você merecer”. Neste sentido, quilombolas em diversas partes do país lutam para revitalizar, proteger e fazer uso consciente de nascentes, rios e áreas degradadas.
Em diversas regiões, as comunidades quilombolas desempenham um papel fundamental na recuperação de áreas degradadas, utilizando técnicas de reflorestamento e de restauração ecológica que envolvem a restauração da biodiversidade local.
Ao recuperar áreas desmatadas ou comprometidas pela agropecuária e monoculturas como as de eucalipto e soja, os quilombos não apenas reconstroem ecossistemas, mas também oferecem um modelo de regeneração capaz de ensinar ao mundo que é possível restaurar o que foi destruído — quando cuidado e tempo são dedicados.
Energia renovável e autossuficiência energética nas comunidades quilombolas
A busca por soluções energéticas sustentáveis é um desafio global, e as comunidades quilombolas têm se posicionado a favor de energia limpa e renovável. Algumas dessas comunidades já utilizam fontes renováveis como a energia solar e biomassa para suprir suas necessidades básicas de eletricidade, o que reduz a dependência de fontes externas e minimiza o impacto ambiental.
Esses modelos de energia limpa e renovável não só são mais baratos e acessíveis, como também fortalecem a autonomia das comunidades quilombolas. Entretanto, as energias limpas estão longe de ser a pauta primária em uma realidade onde muitos quilombos ainda lutam pelo direito à terra.
Economia solidária: cooperação e sustentabilidade
A economia nas comunidades quilombolas é um exemplo de cooperação e solidariedade, onde os membros trabalham em conjunto para produzir, consumir e distribuir recursos de forma circular e horizontal.
Nos quilombos, a troca de saberes e de recursos, em vez da competição, fortalece a sustentabilidade, garantindo que todos os membros tenham acesso aos recursos de que precisam, sem explorar ou consumir mais do que o necessário.
Educação nas comunidades quilombolas
A educação nas comunidades quilombolas não se limita apenas ao ensino formal, mas inclui a transmissão de valores de respeito ao meio ambiente e ao próximo. A educação quilombola é voltada para a preservação das tradições, mas também para o desenvolvimento de habilidades que permitam aos jovens e adultos integrarem as práticas sustentáveis ao cotidiano sem abrir mão da adaptação às mudanças do mundo moderno.
Hoje, são aproximadamente 2.526 escolas quilombolas em todo o Brasil (Censo da Educação Básica 2020). Ensinar as novas gerações sobre a importância da sustentabilidade e da convivência harmônica com a natureza é essencial para a perpetuação dos princípios que orientam a vida nos quilombos e em seus arredores.
Os saberes quilombolas são muito mais do que práticas sustentáveis; eles representam uma visão integral de cuidado com o ambiente e com a comunidade. Esses conhecimentos ancestrais envolvem uma compreensão profunda das relações entre seres humanos e natureza, promovendo práticas que asseguram a saúde e o equilíbrio do ecossistema.
Essa perspectiva está em total sintonia com os objetivos e valores dos programas da Mandū, que buscam fortalecer as comunidades e promover a sustentabilidade. Ao reconhecer e valorizar esses saberes, reforçamos não apenas a sustentabilidade ambiental, mas também a continuidade de uma visão de mundo que prioriza a conexão e o respeito entre pessoas e meio ambiente, como é o exemplo do Programa Quebradeiras.
Essas 9 lições mostram que as comunidades quilombolas não apenas sobreviveram à opressão histórica, mas também se tornaram exemplos vivos de resistência, resiliência e sustentabilidade. Em um momento em que o mundo enfrenta crises ambientais e sociais, essas práticas revelam caminhos para um futuro que valoriza a vida em todas as suas formas — um futuro que ainda é possível, se estivermos dispostos a aprender.
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